Nossas vidas como as vidas dos outros
Nossas histórias não são só nossas, são de todo mundo. Todos somos filhos, temos tios, vizinhos, estudamos nas mesmas escolas que, se não são exatamente as mesmas, divergem apenas nos detalhes, como os tamanhos das roupas nos cabides das lojas. Todos nos apaixonamos, fomos humilhados, traídos, fingimos simpatia, ficamos doentes das mesmíssimas doenças, ficamos acordados durante a noite, insônias tremendas, horas escutando os sons da casa, sem compreender o motivo da involuntária vigilância madrugada a dentro. E o mais curioso não é sequer isso tudo já ter acontecido com todo mundo, mas é certo que acontecerá novamente, e quem tem paciência para as mesmas doenças, paixões, traições, falsidades e humilhações? Quem tem ânimo de enfrentar um futuro totalmente previsível, salvo algumas modificações mínimas, preferir acreditar nesta ou aquela doutrina, ter ou não ter alergia ao glúten, gostar de ler, ter medo de avião, torcer pelo Santos?
Há, nas artes, a ilusória possibilidade de se escapar disso. Cinema, literatura, especialmente as que se ocupam de estórias, são modalidade de artes concebidas e realizadas por gente empenhada em pensar situações diferentes das que todo mundo passa. Arte oferece matéria inspiradora, traz outras experiências, possíveis ou impossíveis, não importa, mas sempre desejáveis. E entende-se perfeitamente que Flaubert tenha dito ser Madame Bovary. Ele queria ser Madame Bovary, personagem que inventou para contrapartida de sua própria vida, cuja monotonia lhe devia ser insuportável. O sonho de estar no lugar de outro, ser outro. Ao fim, isto pouco difere das garotas de antigamente quererem ser a Princesa Leia e os garotos Luck Skywalker.
Compartilhamos uma língua e com ela hábitos, gestos, roupas, cores de pele, café descafeinado e destinos. E a ocupação dos diretores de arte do cinema, da propaganda, de tudo aquilo que induz ao desejo de ser algo que não se é mas se quer ser, é inventar personagens em situações inesperadas face as que conhecemos.
A propósito desse intrincado jogo de espelhos, Cindy Sherman, artista norte americana, publicou no final dos anos 1970, o livro Cindy Sherman and my photographs, um conjunto de fotos realizadas entre 1977 e 1980, cada qual um autorretrato ou, acompanhando a ambiguidade do título, um retrato de uma outra pessoa, a rigor ela mesma travestindo-se de um entre os infinitos estereótipos femininos ofertados pela indústria cinematográfica, com destaque àqueles produzidos entre as décadas de 1950 e 1960, período em que a realidade foi sucumbindo as imagens que iam sendo produzidas sobre ela. A artista consagrava-se à cópia, o registro de si vivendo outras vidas que, afinal de contas, eram dela mesma.
Renata Siqueira Bueno, artista paulista, apropriou-se de algumas das apropriações mais conhecidas dessa série de Cindy Sherman tomando o cuidado de desviar-se sutilmente delas, como que reinventando-as. Os retratos que faz de si, os autorretratos, são, cada um deles, os retratos que faz a partir de uma terceira pessoa, uma outra mulher, Cindy Sherman, multiplicando-se em outras mulheres, todas elas impalpáveis, inexistentes, todas elas marcando concretamente as vidas das mulheres. O que são, do que tratam as imagens de Renata? Seria o pequeno desvio da fonte, do original, a troca da imitação pela contraposição aquilo que chamamos de realidade, de verdade?
Agnaldo Farias
PS – sim, este texto foi copiado.